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EPISÓDIOS

 

A vivência. As experiências. Os sentimentos. As histórias que cada um guarda e não esquece.

Os testemunhos dos homens que fizeram parte da Companhia de Artilharia 2718.

 

 

 

 

 

Aniversários

 

3 de Novembro de 1971. Quatro e meia da tarde.

A noite aproximava-se. No dia seguinte havia saída para mais uma operação.

Cumprindo os procedimentos já tornados rotina, o alferes acabara de reunir com os homens do seu grupo de combate para preparar a operação - conhecimento da natureza da operação e do local do objectivo, detalhes sobre a missão a cumprir, escolha e revista do equipamento a utilizar, definição do papel a desempenhar por cada equipa.

O Carlos Silva aproximou-se.

- Meu alferes - exclamou com o sorriso matreiro que habitualmente sobressaía da sua face quase sem barba - fui buscar umas grades de cerveja à cantina. Não se esqueça de as ir pagar.

- Grades de cerveja?! Para quê?

- Então já se esqueceu que faz hoje anos? O meu alferes oferece a cerveja, que nós já estamos a preparar os frangos de churrasco para a tainada. Temos que comemorar enquanto cá estamos!

Ficou surpreendido. Essa coisa de fazer anos parecia não ter sentido naquelas paragens e naquelas circunstâncias. Comemorar aniversários era um acto relegado ao esquecimento, no meio das angústias do dia a dia, do premente desejo que o tempo passasse depressa, muito depressa que a guerra não era flor que se cheirasse e entretanto já se tinham passado dezoito meses de comissão. Tanto tempo!

- Faço anos, pois é, faço 24 anos. Ei Carlos, estamos a ficar velhos, hem?

- Pois é meu alferes, aqui envelhecemos num instante. É melhor nem falar nisso.

 

Foi um jantar de jovens, jovens feitos homens à força, jovens que não tiveram tempo para serem jovens, jovens feitos homens para matar, sem tempo nem espaço para pensarem o seu futuro, sem outra liberdade que não a de tentarem cumprir o seu destino imediato, programado por outros, evitando o perigo para regressarem a casa em condições de recomeçar.

 

4 horas da manhã. É tempo de sair para a operação.

7 horas. Para o alferes e mais quatro homens do seu grupo não houve tempo para pensar o futuro. Bombas colocadas no seu percurso e comandadas à distância, cercearam-lhes esse direito.

O alferes lembrou-se do livro de António Lobo Antunes - "Caro dr. Salazar, se você estivesse aqui e agora, enfiava-lhe uma granada sem cavilha pelo cú acima!"

No desespero que se seguiu tentou encontrar antídoto para o sofrimento. Do mal o menos, pensou! Acabou-se a guerra, vou para casa. Acabou-se o martírio, acabou-se o medo constante, acabou-se a falta de tempo para escolher o tempo de ter medo!

Ah gerações de 60/70, que contradição!

 

3 de Novembro. 3 de Novembro de todos os anos. O alferes é obrigado a lembrar dois episódios da mesma data!

 

 

                                                                                                        JFCF

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia

Texto de Cândido Lopes, escrito no Sagal em Novembro de 1970

 

 

”Eu”

 

 

Eu, que vou por caminhos na selva traiçoeira,

E que enfrento com igual destemor

A morte, as lágrimas e a dor,

Com uma coragem pura e verdadeira.

 

Eu, que de arma aperrada,

Longas horas espero na picada ardente,

E quando as forças me abandonam bruscamente,

Sei estar alerta pela madrugada.

 

Eu, que sei dar valor ao meu sacrifício ingente,

Que sei interpretar os meus ideais,

E daria se me pedissem muito mais,

Mais do que o meu amor consente.

 

Eu, que de farda rota e de olhar cansado,

Busco pelas matas densas o inimigo implacável,

Que sei quanto vale o meu esforço inigualável,

E das razões gloriosas do meu passado.

 

Eu, para quem a morte é o galardão,

Dos meus feitos imortais, do meu querer,

Que sei sorrir para não desfalecer,

E para quem o mais desgraçado é irmão.

 

Eu, soldado,

Num último esforço afirmo ao mundo inteiro,

Que o meu ardor é firme e verdadeiro.

 

 

 

                                                                      Sagal

                                                                      Novembro/1970

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carta a um soldado

Texto de Américo Henriques, escrito no Sagal em Dezembro de 1970

 

 

Está quase a terminar o Natal. Na casa silenciosa, só soa agora o tic-tac do enorme relógio do hall.

Através das janelas embaciadas pelo calor, vêm-se as árvores vergadas ao peso da neve. Estamos sózinhos agora ... sós com os nossos pensamentos e com a recordação de um Natal passado sem a tua presença.

Quando te foste embora, levaste um pedaço do nosso coração.

Nessa altura julgávamos não poder suportar uma dôr tão grande e não voltar a ter a alegria do Natal, quando nesta casa reina a solidão.

Foi a primeira celebração da natividade sem a tua companhia, sabendo que à tua volta reina a desgraça e a luta, o ódio e a violência.

Para esquecer tudo isso, discutimos a felicidade de podermos ouvir canções de Natal, em lugar de tiros ou outros ruídos próprios da guerra.

Em vez de fome e morte, falámos da neve, das estrelas e do retorno das próximas colheitas.

Onde te encontras, pessoas há que morrem para que outras possam viver, mas temos que conhecer o mal para apreciarmos o bem.

É preciso conhecer as coisas tristes, para melhor apreciarmos as alegres.

Enquanto tu ouves tiros, nós ouvimos o repicar dos sinos da nossa igreja, mas na vida é preciso acreditar-se em algo superior.

Ocupámos o tempo falando e jogando, e foi assim querido filho, que passámos o Natal, sem a tua desejada presença.

Teremos agido bem, celebrando esta quadra festiva ignorando se a tua situação é calma ou se andas em perigo de vida?

 

 

                                                                                                                              Beijos dos teus Pais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os ignorados da História

Publicado em Junho de 1971 no "Novo Rumo", jornal de caserna da CART 2718

 

 

O "Mouraria", um rapaz ignorado e que não ficará na História, um homem que ninguém conhece, um cidadão soldado de Portugal num momento difícil, um rapaz cuja educação, na infância, não fora das mais eficientes, é um entre os milhares de rapazes que, nas matas africanas, adquirem uma nova família. Para além das fileiras, após a desmobilização, não mais essas famílias deixarão de existir.

Batem-se nas penosas picadas do norte de Moçambique, nos trilhos sem fim das "Terras do Fim do Mundo" ou nas bolanhas da Guiné, tentando chegar, chegar não se sabe bem onde, para resolver não se sabe bem o quê. Muitos deles sucumbem inexoravelmente ou ficam mutilados.

E assim, anos volvidos, aquele rapaz cuja formação não é brilhante, que após as fileiras não se sabe bem o que faz - o "Mouraria", de súbito, sem contar, encontra o "seu alferes" quase cego.

Uma mina, algures nos confins africanos, roubara a luz ao chefe de uma das muitas "famílias" nascidas naqueles anos de tragédia.

O ex-soldado fica perplexo, confuso, não sabe o que dizer. Descreve algumas cenas de uma vida um pouco nebulosa com imagens errando por essa Europa turbulenta. Recordam tempos passados.

"Este rapaz, coitado, é uma vítima de uma infância triste, tristemente obscura" - pensa o "seu alferes". E separam-se com uma promessa um tanto vaga de "até breve".

Mas quando o Natal se aproxima, quando o frio intenso se faz sentir no coração e nos corpos dos homens sem eira nem beira, o "Mouraria" telefona ao seu "familiar", ao seu "chefe da família africana". O encontro dá-se pouco depois, entre os dois jovens já veteranos.

"Meu alferes...eu cá vinha oferecer-lhe uma das minhas vistas. O meu alferes, aquele homem que eu conheci em África, que nos comandou durante a guerra, não pode ficar cego."

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